Principal fonte de abastecimento de água do Rio de Janeiro se transforma em esgoto a céu aberto diante da omissão do poder público. Pescadores, moradores e ambientalistas denunciam: “Estamos assistindo ao fim de um rio que nos deu tudo”.
Por: Luiz Calderini
O rio que abastece milhões, mas recebe esgoto todos os dias
Uma névoa densa de mau cheiro paira sobre a calha do Rio Guandu, que corta diversos municípios da Baixada Fluminense. A cena registrada recentemente, após uma manutenção da Cedae que esvaziou momentaneamente uma das comportas da represa, revelou a face crua de uma tragédia anunciada: o leito do rio, coberto por uma lama escura e pestilenta, expôs o nível alarmante de poluição que o Guandu a silenciosamente há décadas.
O que deveria ser um rio de águas limpas e correntes, hoje agoniza sob toneladas de dejetos lançados diariamente por rios como o Queimados, Ipiranga, Poços, São Pedro e Santana. Sem tratamento de esgoto na maioria das cidades da região, o Rio Guandu se tornou o destino final de esgotos domésticos, efluentes industriais e lixo urbano.
História: o nascimento de um gigante fluminense
O Rio Guandu nasce da junção do Ribeirão das Lajes com o Rio Santana. Em tempos antigos, suas margens eram margeadas por matas ciliares preservadas, fauna diversificada e comunidades ribeirinhas que sobreviviam da pesca e da agricultura. A água era limpa, potável, e muitos moradores ainda lembram do tempo em que se podia nadar ali.
“Quando eu era criança, mergulhava nesse rio. A água era fria e doce. Hoje, nem peixe tem mais. Só lixo e morte”, lamenta seu Valter Gomes, de 66 anos, pescador há mais de quatro décadas em Nova Iguaçu.
A importância do Guandu cresceu no século XX, com a expansão urbana do Rio de Janeiro. Em 1955, foi inaugurada a Estação de Tratamento de Água do Guandu, a maior do mundo na época, com capacidade de abastecer milhões. Era o início da dependência da capital fluminense de um rio que, hoje, agoniza.
O retrato da negligência: lama, lixo e silêncio
Após a recente manutenção da Cedae, vídeos realizado por Alexandre da MN Mendanha Notícias mostra o leito do Guandu seco em trechos, revelando um cenário quase apocalíptico: lama negra, peixes mortos, ossadas de animais, detritos urbanos e um fedor inável.
“Tem dia que não dá pra aguentar o cheiro. Quando venta, parece que a gente tá morando num esgoto aberto. Isso aqui é perto de onde tratam a água pra beber. Imagina quanto de química não precisam usar pra limpar isso tudo!”, denuncia Rosa Fernandes, moradora do bairro Figueira, em Nova Iguaçu.
De fato, quanto mais poluída a água, mais produtos químicos precisam ser aplicados para torná-la potável. Especialistas alertam que, em breve, o processo poderá se tornar inviável ou excessivamente caro, colocando em risco o abastecimento da capital e da Baixada.
Famílias que vivem do rio estão à beira do colapso
Cerca de 9 milhões de pessoas recebem água tratada do sistema Guandu. Ao mesmo tempo, milhares de famílias sobrevivem, precariamente, de atividades ligadas ao rio — como pesca artesanal, agricultura irrigada, pequenos comércios e turismo rural.
“O que a gente pega de peixe quase não dá mais nem pra vender. Muitas vezes o que sai do rio, a gente joga fora, porque ninguém quer comprar peixe com cheiro de esgoto”, diz Paulo Henrique de Souza, pescador da região de Seropédica. “A gente ama o rio, mas ele está morrendo. E com ele, a nossa vida.”
A esperança enterrada sob o lixo: o Aquífero Piranema
Com o Rio Guandu em risco, especialistas têm apontado o Aquífero Piranema — um reservatório subterrâneo de águas puríssimas em Seropédica — como plano B para o abastecimento futuro da Região Metropolitana.
Mas o que poderia ser uma solução estratégica está sendo destruído silenciosamente. Em 2011, o governo do Estado autorizou a instalação do Centro de Tratamento de Resíduos (CTR) de Seropédica, popularmente chamado de lixão da Ciclus, exatamente sobre a área de recarga do aquífero.
“É uma loucura sem tamanho. Estão jogando lixo em cima da água que pode nos salvar amanhã”, alerta a bióloga Luciana Valverde, pesquisadora da UFRRJ. “Mesmo com todas as camadas de proteção, o chorume um dia pode chegar ao lençol freático. O risco é real, e irreversível.”
O silêncio das autoridades ambientais
Moradores e ambientalistas têm denunciado repetidamente o risco ao Guandu e ao Aquífero Piranema. O principal alvo das críticas é o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), que além de autorizar a instalação do CTR, tem se mostrado omisso frente à crescente degradação do Guandu.
“A função deles é proteger. Mas o que vemos é o oposto: “Ausência de fiscalização e falta de diálogo com a comunidade”, denuncia o ambientalista Eduardo Reis, da ONG em defesa do Guandu. “Enquanto isso, a natureza pede socorro.”
O futuro está à vista — e ele é turvo
Se nada for feito com urgência, o Rio Guandu poderá se tornar irrecuperável. O colapso no abastecimento de água afetaria diretamente a economia, a saúde pública e a vida de milhões.
“A gente já não toma essa água direto da torneira faz tempo. Usa filtro, ferve, e mesmo assim vive com medo”, diz a dona de casa Marilene Souza, moradora de Queimados.
O cenário é sombrio, mas reversível — se houver vontade política. Investimentos maciços em tratamento de esgoto, recuperação de matas ciliares e proteção efetiva dos mananciais são urgentes.
Mais do que isso, é preciso rever decisões desastrosas, como o licenciamento do lixão sobre o Aquífero Piranema, e cobrar dos órgãos públicos o cumprimento de sua função legal: proteger os recursos naturais e garantir o direito à água limpa.
“Quando secar a última nascente, a gente vai lembrar do Guandu”
A frase dita por um pescador resume a angústia de quem vive às margens de um rio outrora majestoso e hoje malcheiroso. A história do Rio Guandu não pode terminar enterrada sob lama e lixo. A sociedade precisa escolher: continuar de costas para o problema ou encarar o desafio de salvar um dos mais importantes rios do Brasil antes que seja tarde demais.
VÍDEO ANTES DO INICIO DA MANUTENÇÃO DA CEDAE (DIA 19) – VÍDEOS E FOTOS ALEXANDRE DA MN MENDANHA NOTÍCIAS
FOTOS ANTES DA ABERTURA DAS COMPORTAS
FOTOS E VÍDEO APÓS ABERTURA DAS COMPORTAS
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